terça-feira, 29 de janeiro de 2019

O Homem Que Sabe Ser Rejeitado

Todo homem que um dia se dedicou às mulheres está acostumado com a rejeição. 
O que significa “dedicar-se às mulheres”?
Bem, eu e meus velhos amigos da época de adolescência crescemos encantados por elas. E, quando digo “encantados”, é encantamento mesmo. As mulheres, para nós, eram seres misteriosos e, sem dúvida alguma, superiores. Claro, naquela época não existiam redes sociais, ninguém se expunha. Você precisa ouvir alguém falando para se desiludir.

Então, nós as desejávamos em silêncio, sabendo que a decisão não era nossa; elas é que escolhiam. Nós esperávamos. Se déssemos sorte, aquela morena de pernas de seda repararia em nós e emitiria uma breve risada a uma gracinha que disséssemos. Ah, sim, o riso de uma mulher abre uma fresta no seu coração, disso nós sabíamos.

Havia chance de que tudo desse certo, portanto. Quem sabe, até engatava um namoro. Mais tarde, porém, podia acontecer de o olhar dela ficar embaçado quando você dizia outra gracinha e aí, inevitavelmente, por algum motivo insondável, chegaria o dia em que ela anunciaria:
– Não quero mais.

É um momento dramático. Você tenta, você implora, você rasteja feito um verme, você se arrisca a fazer poesia, só que não adianta mais. A mulher, quando decide desistir, não volta atrás.
Esse sofrimento pelo qual você passa é muito didático, exatamente porque você aprende a ser rejeitado, e o mundo está sempre nos rejeitando. Assim, da próxima vez que você for dispensado, esquecido, chutado ou desprezado, você poderá até se entristecer por algum tempo, mas saberá que conseguirá superar a dor, que irá em frente e que ali adiante novas oportunidades surgirão. É possível, inclusive, que, no futuro não muito distante, você olhe para a sua ex e se pergunte:
– Mas como é que eu pude sofrer por essa mala?
Essa é a atitude certa. 
A rejeição tem de ser usada a seu favor. Você vai se entender melhor e melhor entenderá o mundo. Os americanos dizem: “No pain, no gain”. E é isso mesmo: sem dor, não há ganho. Sinta a dor. E aprenda.
Alguns homens, no entanto, são orgulhosos. Por não compreenderem o valor da rejeição, não compreendem que eles não têm controle nem sobre suas próprias vidas, quanto mais pela vida dos outros. São esses seres inferiores que saem por aí matando as mulheres que os rejeitaram.
Um homem que nunca foi rejeitado é um homem incompleto. É um homem que nunca esfolou o joelho jogando bola, que nunca caiu de bicicleta, que nunca foi barrado na entrada, que nunca se dedicou às mulheres.
Quando eu era pequeno, os mais velhos diziam que servir ao Exército fazia muito bem ao jovem. Porque ele aprendia a obedecer, aprendia a se conformar, aprendia que a humilde aceitação é a maior força de que um homem pode dispor no enfrentamento da vida. Uma boa rejeição faz o serviço de um ano de quartel. Não se envergonhe da rejeição. Não se envergonhe de ouvir não. Quem está vivo está sempre ouvindo não.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

O bem que faz a calcinha

As mulheres passaram milênios sem calcinha. Desde os albores da civilização, há pouco mais de 80 séculos, foram pelo menos 75 que elas viveram desprovidas dessa fundamental peça do vestuário, acarretando algum constrangimento na hora de cruzar as pernas, além de grave risco de resfriados.
Havia também desconforto para as amantes da equitação — no momento de montar à amazona, firmando um pé no estribo e passando a outra perna por cima da sela, as moças ofereciam um revelador e aprazível espetáculo para os rapazes da época. Assim, na pudica Idade Média foi inventada uma cadeirinha de madeira que era afixada no lombo do cavalo. As moças se viam alçadas até a cadeira e cavalgavam dessa forma, de ladinho.
Lógico, a solução mais prática seria o uso de calças, mas essa não era uma boa idéia. Os medievos viviam cheios de preconceitos e regras, algumas delas acerca das roupas femininas. Calças eram proibidas às mulheres e uma das que tentou vesti-las, a jovem Joana DArc, terminou seus dias amarrada em um poste e queimada numa fogueira, algo que quase todas as mulheres de então consideravam muito chato.
A vida continuou assim, nada parecia mudar na sombria Idade Média, até que Catarina de Médicis deixou a Itália para se tornar rainha da França. Catarina adorava cavalgar, em seus tempos de donzela de família rica, em Florença, parecia a versão feminina do Centauro. Mas, como rainha, havia de ter novos cuidados.
Para continuar montando à vontade sem que os vassalos antevissem as intimidades mais profundas da realeza, Catarina bolou uma espécie de calçola diminuta, peça que nada tinha a ver com as calças masculinas, mas que cobria as partes pudendas a contento.
Estava inventada a calcinha.
Suprema invenção.

As súditas, vendo as particularidades de sua soberana protegidas com tamanho aconchego, apreciaram a novidade e a adotaram com entusiasmo. Depois, numa atitude bem peculiar das francesas, passaram a empreender melhoramentos na invenção. Subtraíram nacos de pano daqui e dali, costuraram um adereço acolá, transformaram a calcinha, mais do que numa peça de roupa, num adereço.
Agora, se a calcinha trouxe benefícios às mulheres, bem mais trouxe para os homens. Porque, a partir daí, os homens passaram a ter o indizível prazer de tirar calcinha. As mulheres talvez não consigam compreender esse que é um dos momentos mais felizes da vida de um homem — quando ele, pela primeira vez, tira a calcinha de uma mulher há muito desejada. Diversos dos meus amigos afirmam que tirar a calcinha da mulher amada é melhor até do que o sexo subseqüente. Porque tirar a calcinha equivale a vencer as últimas resistências, a derrubar com um aríete as portas da cidadela sitiada.
Lá está aquela mulher cobiçada e linda, que seus amigos queriam, que seu chefe queria, que você sempre quis, e você prende as alças da minúscula calcinha dela entre os indicadores e os polegares, vai baixando a calcinha, baixando, baixando, e sorri, e olha para o teto, e pensa: obrigado, Senhor!
Essa a emoção de baixar uma calcinha. Emoção que as mulheres jamais compreenderão. O sutiã. Elas cogitam muito do sutiã. E, claro, o sutiã tem o seu valor. Sobretudo o plec. É uma alegria, quando o sutiã faz plec!, ao se abrir. Mas o sutiã é meio complicado, vez em quando hostil, quando não inviolável. Além do mais, quem precisa de um sutiã aberto?
A calcinha, não. A calcinha, sendo retirada, representa o tesouro sendo desvelado. Representa a visão da Terra Prometida.
Vocês, mulheres, entenderam enfim o que significa, para nós homens, tirar a calcinha da amada?
Certo, agora, homens e mulheres pensem em Henrique. Foi ele, Henrique II, o primeiro homem do planeta a baixar uma calcinha. Porque Henrique II era o rei da França, marido de Catarina. Logo, coube a ele o privilégio de executar o primeiro baixamento de calcinha da História da Humanidade. Que momento! Que homem feliz!
Mesmo tendo ele morrido da forma que morreu, com uma daquelas lanças medievais espetada no olho, numa agonia lenta de 10 dias de duração, mesmo tendo sofrido morte tão terrível, acredito que, no derradeiro suspiro, Henrique possa ter lembrado do doce instante no qual baixou a mãe de todas as calcinhas e, então, Henrique compreendeu que sua vida teve um sentido. E sorriu.

terça-feira, 18 de abril de 2017

Única noite livre na semana

Única noite livre da semana. Ú-NI-CA. Confessa, noite livre em casa. Porque noite livre na rua, com os amigos, indo aquele bar que você não queria tanto ir, mas foi assim mesmo porque, afinal, também não queria tanto não ir, a ponto de deixar de ir, aquele bar não conta como noite livre. Conta como o proverbial “ir zoológico dar pipoca aos macacos.” (Raul explica tudo tão bem!).

Única noite livre da semana. Quer dizer. Livre, livre, leve e solto, à toa, a noite não é. Para ser livre você precisa ignorar várias camadas de coisas que precisa fazer. Aquelas coisas importantes que poderiam mudar sua vida se você fosse fazer. Começar a estudar o Novo Código de Processo Civil, para trocaram o Código? Ou aquelas coisas que você deveria fazer, mas, pelamordedeus, hoje é a única noite livre da semana e você não vai usar para, sei lá, ir à academia correr na esteira, arrumar a gaveta da mesa de cabeceira. Sua cabeça é boa em esquecer coisas inconvenientes. Ainda bem. Noite livre, graças à memória seletiva.

Única noite livre da semana, finalmente. Já é quinta. Quase sexta. Sexta não é mais semana, nem livre, porque vai aparecer alguma coisa, sempre aparece. Sexta é um dia traiçoeiro. Complicado. Aparece amigo, aparece zoológico, aparecem aquelas coisas que você vai acreditando que gosta, mas dá uma preguiça de ir na hora. Aquelas coisas que podem ser até que legais. Mas nem sempre são. Igual concerto de música clássica. É bom se não tiver ninguém tossindo ou conversando ou balançando a perna nervosamente, fazendo aquela barulhinho chato com a cadeira. Nhic, nhic, nhic, nhic. Mas sempre tem. O oboé faz lá o barulho de oboé, a nota de oboé, o timbre de oboé. E a cadeira “nhic, nhic, nhic, nhic”. Dá vontade de falar todo gentil “Para de balançar essa de perna, meu senhor, porque eu preciso ouvir o oboé.” Mas não pode falar, porque atrapalha todo mundo. E fica chato para você. A vontade de falar com a pessoa passa. Vira vontade de matar a pessoa. Com um oboé, que agora já parou de tocar. Já está tocando o cello. A cadeira na mesma. A perna na mesma. Sexta-feira é um dia complicado. Traiçoeiro. Não dá para confiar.

Mas hoje é quinta-feira. Única noite livre da semana (já contei?! Ú-NI-CA.) E um monte de coisas boas para fazer. Tem livro para ler. Seriado para ver. Filme para assistir. Videogame para jogar. Tudo coisa boa. Só tem um problema. Tem muita coisa. Dá aquela angústia. Tem que decidir. E decidir não é fácil. Porque se faz uma coisa, na verdade, você deixa de fazer um monte de outras coisas. E dentro de cada coisa, tem um monte de subcoisas. Vai ver filme? No Netflix ou blu-ray? Qual filme?

Sei não, filme dá sono. Você já está com sono. Vai dormir. E aí, já sabe, a única noite livre da semana vira noite dormindo torto no sofá. Filme não. Demora muito. Melhor não. Jogo também não, porque deixa você agitado. Coisa de velho isso de “ficar agitado”. Igual gato naquele horário que gato corre pela casa sem explicação. Coisa de gato velho, deve ser. Você no GTA corre de carro, corre da polícia, corre dos outros que correm para pegar você. Se desligar o jogo vai continuar correndo. Como que dorme depois? Se dormir, corre no sonho. Melhor não. Livro? Sono. Melhor não. Vai de seriado. Mais fácil. Seriado é curtinho. Menos de uma hora. Pílula de diversão. Dá até para olhar um pouco do livro, se não tiver com sono. Ou ver dois capítulos do seriado. Pode ser.

Aí você vai ver o seriado. E, bem, esse não está legal. Não deu liga o episódio. Azar, hein? Justo na única noite livre da semana o capítulo do seriado é chato. Agora não dá mais para começar outra coisa. E você nem tem ânimo para ver outro capítulo do seriado, porque, se esse foi chato, o próximo também. Bate aquela tristeza. Porque você tinha um mundo de coisas para fazer e escolheu errado. Tinha filme. Tinha livro. Tinha GTA. Mas não, você resolveu ver o seriado e deu nisso. Até o bar era melhor que o seriado.


Ainda tenta consertar. Assiste aos últimos episódios do Porta-dos-Fundos. Mas nem ri, porque era a única noite livre da semana. E está desperdiçada. Mas a vida é assim. Uma única noite livre na semana. E você sempre escolha a coisa errada para fazer.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Eles preferem as loiras


Ela se virou de lado. Assestou a orelha no travesseiro. E miou, sorridente:
- Amanhã é seu aniversário...
Ele apenas sorriu de volta, modesto: era. Ela continuou, rouca:
- Pode pedir o que quiser...
Ele arregalou os olhos.
- O que eu quiser?
Ela, lambendo os lábios, a malícia faiscando nas bordas das pupilas:
- Arran...
Ele sentou na cama, apoiando-se nos cotovelos:
- Tudo mesmo?
- Tudo. Tudinho... - disse: tudjinho, com dê e jota.
Ele olhou para o gesso do teto, sonhador:
- Quero que você seja loira!
Ela arregalou os olhos. Sentou-se também.
- Lo-loira? - gaguejou. - Quer... que pinte o cabelo?
- Isso! - Estava ereto, agora. Esfregava as mãos. - Isso! Sempre quis que você fosse loira. Sempre quis.
Ela deitou a cabeça no travesseiro. Fechou os olhos. De olhos fechados, concordou:
- Tá bem. - E depois de um suspiro: - Tá bem...
Na manhã seguinte, ele saiu de casa saltitante, foi trabalhar assobiando uma música dos Travessos. Ela acordou sentindo uma pedra no peito e uma bola de tênis na garganta. Não conseguia se imaginar loira. Ao contrário: sempre se orgulhara dos cabelos negros, jamais tocados por tintura. Loiras... Sabia bem como eram. Vistosas, é verdade. Tinha de admitir que loiras chamavam a atenção. Porém, eram dissimuladas, orgulhosas. Arrogantes, até. Além do mais, a vida inteira desprezara as falsas loiras e suas raízes de cabelo pretas. Que nojo. Mas havia prometido... Que idéia era aquela, "pode pedir o que quiser"? Bem-feito!
Foi um dia difícil. Um dia de angústia. Por que ele pedira aquilo? Não gostava dela como era? Cobiçava alguma loira? Estava ficando com raiva do desgranido.
À tarde, na hora da transformação, o ódio se desfez em soluços. O cabeleireiro teve de lhe buscar um copo d´água com açúcar. Só se sentiu melhor quando saiu do salão e passou por dois homens de terno. Eles a olharam de um jeito que nunca havia sido olhada antes: com gula. Por que os homens olhavam assim para as loiras?
Em casa, mirou-se no espelho. Não conhecia aquela ali refletida. Vestiu sua lingerie mais ousada, uma que nunca tivera coragem de usar. Ele chegou e tomou um susto.
- Meu Deus, é outra mulher!
Era. Foi uma noite de amor única. Nem na época de namorados tiveram uma noite igual. Pela manhã, ele se levantou cansado, mas satisfeito. Ajeitava a gravata para ir trabalhar, quando ela saiu do quarto. Estava já vestida: saia mínima, decote íngreme.
- Onde você vai assim? - espantou-se ele.

- Ao super - respondeu ela, já saindo. Saiu. Ele correu para a janela, perplexo, a tempo de vê-la ondulando pela rua. Ondulando. Queria uma loira. Tinha uma loira.

terça-feira, 12 de julho de 2016

Metade de Mim

Algo está faltando aqui. Sinto que algo maior do que eu penso está faltando em mim. Olho minhas mãos. Cadê minha mão direita? Cadê meu braço direito? Minha perna?! Metade de mim sumiu!

Eu ainda me sustento como se tivesse todo o corpo, mas sei que só tenho metade. Andando pelas ruas ninguém percebe. Amigos, familiares, conhecidos … como ninguém me alertou?! Metade de mim sumiu!

Tento falar com alguém, num momento oportuno. Ninguém me ouve. Todos me vem inteiro. Muitas vezes sinto partes de mim se reconstituindo, mas de uma forma diferente. Isso não sou eu. Cadê aquela metade de antes? Metade de mim sumiu!

Caminhando, passo em frente de uma vitrine qualquer, numa calçada qualquer. A imagem refletida está inteira. Como um vampiro às avessas. Minha imagem está intacta, talvez por isso ninguém fale nada. Mas não estou inteiro. Metade de mim sumiu!

Vou trabalhar. Porém, uma guerra idiota acabou com o trabalho. Agora tenho mais tempo pra olhar pra mim. Sem espelhos. Sinto muito, Orlane. Metade de você sumiu!

Por alguns momentos me vejo inteiro de novo. Ufa, voltei. Mas não. É só pele, não tem nada por dentro, e essa superfície frágil, quando eu menos espero, explode, revelando, nos piores momentos, a verdade. Metade de mim sumiu!


Um dia, quem sabe, a pele voltará a revestir algo inteiro e maciço. Real. E aí, novamente, a imagem voltará a ser fiel ao corpo. Por enquanto, espero. Olhando no espelho e torcendo pra que o meu reflexo inteiro, acelere a minha reconstrução, lenta e vagarosa, doendo um pouquinho, sarando um pouquinho. Aos poucos, porque agora: Metade de mim sumiu!

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Infidelidade

– Seu Flávio! O que está acontecendo aqui?!
– Calma aí, seu Gregório! Não vamos fazer um escândalo aqui no meio da rua. Eu posso explicar.
– Não precisa explicar nada! Eu te peguei saindo da banca do seu Matheus! Como ousa a comprar em outra banca de jornal? A minha banca não te satisfaz mais?
– Não é isso seu Gregório. É que eu estava de passagem…
– E resolveu comprar um jornal do seu Matheus rapidinho? É o que todos dizem. Essa geração promíscua! Eu pensei que você fosse diferente.
– Deixe-me terminar de explicar… Eu estava de passagem e parei para comprar um cigarro. Só um cigarrinho, juro! Você sabe que eu sempre compro o jornal de você, né?
– Nem vem com esta história! Então para quê essa sacola?
– Que sacola?
– Esta que você está escondendo aí atrás! Passa para cá!
– Que isso, larga de ser desconfiado seu Gregório! Você não confia mais em mim?
– Deixe-me ver essa sacola! O que? Uma daquelas revistas com DVD?!! Você nunca comprou dessas comigo!
– É que… É que o seu Matheus me deu um desconto.
– Você podia ter falado comigo! Você sabe que também teria dado. Não precisava ir até outra banca! Se lembra daquela vez… snif… Daquela vez que… snif… Você havia perdido aquele número da revista que colecionava… e eu… Eu consegui para você… E é assim que me agradece? Ingrato!
– Mas foi um desconto de 30%!
– E nossos 20 anos de relacionamento? Não contam? Se você tivesse me trocado por uma assinatura eu até compreendia. Iria ser duro, mas entenderia. Sei que é difícil competir com a facilidade da entrega em casa, e ainda com todas aquelas promoções.
– Não, eu nunca faria isso com você.
– Lembra do seu Cláudio? Ele também sempre repetia isso. Não deu 6 meses e o canalha já me trocou por uma assinatura. Quando ele me via fazia questão de atravessar a rua e esconder o rosto, só de vergonha de falar comigo. Mas eu superei. Hoje em dia ele até aparece de vez em quando para comprar uma Veja de domingo. Mas você? Você me trocar por uma revista com DVD do seu Matheus?
– Olha, desculpe seu Gregório. Não pensei em meus atos. Vamos esquecer que isso aconteceu. Confie em mim, prometo que isso nunca mais se repetirá.
– Tudo bem seu Flávio. Desculpe-me também. Acho que me excedi um pouco. Você sempre foi um ótimo cliente.
– Você também é um ótimo jornaleiro! Me dá um abraço aqui!
Seu Matheus que acompanhava a conversa de longe dá uma piscadinha para seu Flávio, este retribui discretamente com um sorrisinho maroto.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Tenho medo de Lula

Sou dos que sentem medo da possibilidade de Lula voltar à Presidência. Admito. Seria horrível e, sim, pode acontecer. Coisas horríveis acontecem. Mais quatro anos andando para trás. Mais quatro anos de atraso. O Brasil vai demorar muito tempo para se recuperar desses governos petistas. Se se recuperar. O PT, com seu discurso de “Elite Branca x Pobres Pretos”, conseguiu instaurar no país um clima de animosidade irracional que não será desfeito tão facilmente. E o pior é que a disputa não é entre a Elite Branca e os Pobres Pretos. A disputa é bem mais rasa, entre governistas e antigovernistas. Não é disputa por ideologia. É por poder.

Lula gosta de se comparar a Getúlio, e ele tem razão. Ambos foram responsáveis por rompimentos do natural processo evolutivo da democracia brasileira. Getúlio deu um golpe num processo democrático regular que vinha desde Floriano Peixoto. Cada vez que escrevo isso, os getulistas modernos, que (assombrosamente) os há, gritam que na época havia fraude eleitoral e que a política “café com leite” revezava as elites paulista e mineira no poder. É verdade. Nenhuma democracia nasce pronta. Nenhuma democracia talvez nunca fique pronta. Prontas são as ditaduras. As democracias vão se aperfeiçoando com o exercício democrático, que não é só exercício do voto, é o exercício da convivência das diferenças.

Há um elogio que deve ser feito a Dilma: seu comportamento é absolutamente respeitoso com a democracia. Por mais acuada, por mais agredida, por mais ameaçada que esteja, ela nunca deu uma única declaração que arranhasse a normalidade da regra democrática, como Lula faz amiúde.

Natural. Lula está muito mais comprometido com o projeto de poder do seu grupo do que Dilma. Afinal, o grupo é DELE. Ele é o capo de tutti capi. Foi nessa condição que Lula golpeou a democracia brasileira, embora de forma muito menos contundente do que Getúlio.

O método foi quase o mesmo.

Externamente, Getúlio se associou aos ditadores da época, como Perón. Tentou até se consorciar a Hitler e Mussolini, mas foi dissuadido pelos dólares americanos. Já Lula se associou aos cubanos, à Venezuela, à Argentina.

Internamente, Getúlio fundou o peleguismo sindical. Que é um dos pontos de apoio de Lula.

Lula conseguiu chegar ao poder pelo voto, como Getúlio em 1950. Lula começou bem, com a ampliação do Bolsa Família e a manutenção da política econômica estabelecida pelo Plano Real. A impressão era de que o Brasil havia entrado num caminho de melhora sistemática e de possível solução de seus dramas históricos.

Aí se deu a traição. Nesse momento. Um presidente operário, simpático à população, com prestígio em todo o mundo, comandando um país com economia em ascensão, com uma indústria diversificada e uma agricultura poderosa, esse presidente e esse país podiam empreender as difíceis e necessárias reformas da escola pública, dos sistemas federativo, tributário, previdenciário e penal, poderiam, com muito esforço e pouco sacrifício, construir uma nação.

Mas Lula tinha o seu projeto particular. Tinha o seu grupo. Foi a eles que Lula dedicou seu empenho. E o Brasil ficou para trás. Esse tempo perdido não será recuperado sem dor. O Brasil perdeu muito por causa de Lula. E o pior nem foram as perdas na economia e na política. O pior foi a perda de esperança.

Sim, tenho medo de Lula. Não, não quero que ele volte. Nunca mais.