domingo, 30 de novembro de 2014

Detesto esse tal futebol gourmet

Gosto de arquibancadas divididas, por massas gigantescas se possível.
Detesto torcida única, um crime contra o futebol.
Gosto de times entrando em campo um de cada vez, para serem festejados ou vaiados.
Detesto equipes pisando juntas o gramado, ainda mais quando acompanhadas do pessoal da arbitragem.
Gosto de bandeiras, papel picado e bobinas desenrolando no ar.
Detesto torcidas que se comportam como platéias de teatro e se limitam a aplaudir.
Gosto de sinalizadores, não aquele naval, que mata, mas o inofensivo, de efeito meramente visual. E, admito, sinto saudades do espocar dos rojões.
Detesto bandeirinhas de plástico, em geral encomendadas pelo próprio clube ou seus patrocinadores, que coxinhas balançam abobadamente.
Gosto de ver grades e alambrados repletos de faixas. Trapos, como dizem os vizinhos de sudamerica. E grandes bandeiras agitadas até com bola rolando.
Detesto o aspecto asséptico das tais arenas esterilizadas com suas lanchonetes que servem capuccino e são planejadas apenas para esse tal torcedor-cliente.
Gosto de ver a casa lotada, o que só costuma ser possível quando os cartolas cobram pelos ingressos preços compatíveis com o poder de compra do torcedor.

Gosto do apoio incondicional, das vozes incessantes que vêm das arquibancadas e tomam a cancha. Da galera participando dos destinos da peleja.
Detesto animadores de torcida que determinam o que as pessoas devem gritar, cantar.
Gosto do futebol como ele é. Ou como era. Gosto do futebol como sempre foi.
Detesto esse tal futebol gourmet.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

A tática infalível de Juliana

Juliana nunca havia se sentido tão nua. Mas estava vestida, o corpo bem coberto: calças jeans justas como se tivesse nascido dentro delas, botas de cano alto até os joelhos e uma blusa tão leve quanto a consciência de um anjo. Ainda assim, sentia-se nua. Os olhares dos homens do lugar arrancavam suas roupas às fatias. Juliana recém chegara ao clube no qual seu marido trabalhava como treinador. Havia estacado à margem do campo de treino, e os olhares dos jogadores a lambiam como se ela estivesse coberta de leite condensado.

Julião, chamava-se o marido técnico. Um durão. Havia sido zagueiro tosco no passado, e o estilo de jogar se lhe infiltrara na alma. Julião era um ser humano tosco que se dizia sincero. Orgulhava-se da sua franqueza, de falar sem subterfúgios, de olhar no olho do interlocutor, aquela coisa. Julião era áspero com todos, era sempre rude. Menos com Mariana. Na frente de Mariana, ele virava suflê. Ela era 30 anos mais jovem, era loira, magra, alta, linda e sorridente. Tratava-o por “Ju”, e só ela podia tratá-lo dessa forma.

Pois um dia Juliana pediu para vê-lo trabalhar. Julião não recusou – não lhe negava nada. Levou-a ao campo.

E foi aí que ela se sentiu nua.

No começo, ficou incomodada. Mas, com o correr do treinamento, os olhares dos jogadores foram cevando-lhe o orgulho de mulher bonita. Era bom ser desejada, era bom saber que os homens cobiçavam seu corpo. Sentiu-se uma pantera, uma cavala, uma cachorra, tudo ao mesmo tempo.

Depois daquela tarde, suas visitas ao clube se tornaram frequentes. Gostava de experimentar a sensação de ser alvo da concupiscência masculina. E cada dia Juliana ia com uma roupa mais ousada. Deixava que antevissem uma faixa de carne dourada de seus ombros redondos, ou um pedaço das suas longas pernas, ou o delicado piercing que lhe feria o umbigo. Eles ensandeciam de desejo. Eles a queriam, como a queriam.

Um dia, de todos, foi o mais especial. Juliana se encostara à porta fechada do vestiário. De repente, ouviu o diálogo entre dois jogadores que estavam parados do outro lado. Um disse:

– O que eu mais queria era ver aquela mulher nua.

Juliana estremeceu. Supunha que falavam dela. Mas seria mesmo? Sentiu palpitações. Apurou o ouvido. O outro jogador como que arfou, e o que disse entre dentes quase a fez desfalecer de contentamento:

– Cara, tudo o que eu quero na vida é ver essa mulher do treinador nuinha! Nuinha em pelo!

E o outro:

– Dou todo o meu salário só para ver aquela mulher sem roupa!

Juliana como que flutuou pelo pátio do estádio. O maior desejo daqueles homens era vê-la nua! O corpo dela suscitava todos aqueles desejos, todas aquelas ânsias. Era maravilhoso. Era um sonho.

Depois disso, Juliana passou a ir ao clube todos os dias. O problema é que o time começou a perder. O grupo de jogadores apresentava dissensões, o vestiário estava desunido. O emprego de Julião entrou em risco. Foi o que ele disse uma noite para Juliana.

– Acho que vou perder o emprego – suspirou, enquanto vestia o pijama de sapinhos que ela lhe dera.

Juliana ficou apreensiva. Não queria que ele trocasse de clube. Não queria perder o contato com os olhares quentes dos jogadores. Mas o time não vencia mais. As brigas no vestiário se sucediam. Ninguém se entendia no clube, e Julião não conseguia mais impor sua autoridade. Até que chegou o dia decisivo.

– Se perdermos domingo, estou na rua – comunicou Julião à sua jovem esposa durante o café da manhã de sexta-feira.

Juliana dormiu mal aquela noite. O sábado ela passou casmurra, em sofrimento silencioso. Na manhã de domingo, resolveu tomar uma atitude. Foi até o hotel onde todos estavam concentrados. Chamou Julião. Ele desceu até o saguão. Antes de lhe dar um beijo de saudação, pegou em seus cotovelos e perguntou:

– Você confia em mim?

Julião estranhou, mas sabia que a mulher falava a sério.

– C-confio – gaguejou.

– Então me deixa falar a sós com os jogadores. Reúna todos em uma sala e depois saia. Preciso de 10 minutos com eles, e nós vamos ganhar o jogo.

Julião quis saber o que ela faria, o que ela diria, mas ela respondeu que não podia contar.

– Dez minutos – repetia, sem cessar. – Preciso apenas de dez minutos para explicar a minha tática.

Julião topou. Não lhe negava nada. Poucos minutos depois, Juliana entrou na sala em que os jogadores foram reunidos. Estavam sentados em cadeiras de ferro. Ela usava um vestidinho de alças e sapatos de salto alto. Parou de pé diante deles. Falou:

– Vou dar agora o que vocês sempre quiseram de mim.

E, com a mão direita, baixou a alça esquerda do vestido, expondo um seio firme de tamanho standard. Com a esquerda, removeu a outra alça, e ambos os seios se mostraram aos jogadores. Formavam um lindo par. Aí ela empurrou o vestido para além da cintura fina, das ilhargas sinuosas, das coxas fortes, dos joelhos redondos, das canelas lisas. O vestido pousou nos escarpins. Os jogadores estavam sem fôlego. Juliana continuou ali parada, só de calcinha, escarpins e piercing. Levou as mãos às tiras das calcinhas. O meia-esquerda começou a gemer baixinho.

– Se nós vencermos hoje – miou ela. – Tiro o resto antes do próximo jogo.

E entrou no vestido outra vez. E foi-se embora.

As preleções de Juliana tornaram-se célebres no clube. O time ganhou o campeonato. E Julião jamais descobriu qual era, afinal, a tática revolucionária concebida por sua mulher.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

A tal da elite branca

Inventaram agora essa história de elite branca. Por favor. Uma das poucas vantagens que o Brasil realmente tem em relação a TODOS os outros países do mundo é a miscigenação. No Brasil, as etnias de fato se misturam, e o fazem com naturalidade.

Nos Estados Unidos existem tantas variedades étnicas quanto no Brasil, mas a miscigenação por aqui é mais custosa, as raças ainda se protegem homiziando-se em guetos, casando-se entre si. No Brasil, todos, japoneses, negros, alemães, anões, cafuzos, mamelucos, índios, brancos, azuis, todos são brasileiros.

É óbvio que existe racismo no Brasil — existe em toda parte do mundo. Mas a discriminação maior no Brasil é a social. Nos Estados Unidos havia racismo até nas leis. Não há mais. Eles fizeram ações afirmativas, puniram com rigor manifestações racistas e deram oportunidades iguais a todos. Hoje, negros ocupam cargos importantes, inclusive o mais importante. No Brasil falta precisamente isso _ oportunidades iguais. Não é seccionando a sociedade que se vai alcançar a igualdade. Ao contrário. Há que se unir. Se todos tiverem oportunidades iguais, questões raciais também serão atenuadas.

Donde a perversidade dessa conversa de elite branca. Tenho lido muito isso. Balela de quem quer parecer paladino na luta contra as desigualdades. Descrevem a tristeza dos que ficam do lado de fora do jogo do Brasil, assistindo às lágrimas a passagem dos privilegiados que têm ingresso. Uma jequice. Na Copa da Alemanha foi assim. Na do Japão também. Na Olimpíada de Londres, da mesma forma. Não há novidade. Um bilhão de pessoas querem assistir a um jogo desses, alguém vai ter que ver pela TV.

O ingresso do futebol é muito caro para o pobre. Oh! O ingresso para ver o Chico Buarque não é barato, nem o do show da Madonna, nem a entrada do cinema. Pelé não ganhava um milhão por mês. Fred ganha. Assim, ver Fred é mais caro do que era ver Pelé.

A elite branca xingou a presidente. Quem garante que pobres e pretos não o fariam? Essa elite branca é “branca” de fato? Existem “brancos” de fato no Brasil? Será que existe mesmo essa divisão, pobres e pretos a favor do governo, elite branca contra? Esse é um governo só para pretos e pobres? Como é que se faz para conseguir um governo para todos?

A falta de educação não tem cor nem classe social. Aconteceu em Itaquera, acontece em todo lugar. A falta de educação grassa no Brasil, basta ler o que brasileiros escrevem em comentários de blog e redes sociais a respeito das pessoas com quem não concordam.

Aliás, isso de presidentA. Será que os petistas inteligentes e ilustrados não vêem que isso é uma babaquice? Isso não valoriza a mulher coisa nenhuma, isso a ridiculariza. Quem é o taipa que fala presidentA sem achar estranho?
A propósito, havia no Brasil uma propaganda do TSE, não sei se está passando ainda. É para incentivar as mulheres a concorrer a cargos públicos. A mulher da propaganda pergunta: “Até quando vamos deixar que ELES falem por nós?” Mas como? Um homem não pode representar mulheres no parlamento? Temos que votar por gênero, homem vota em homem, mulher vota em mulher? É assim?

Elite branca, presidentA e outros que tais são apostas na divisão, na ruptura social. Não levam a nada. Ou, antes: não levam a nada de bom.

sábado, 17 de maio de 2014

Um livro, uma história...

Uma tarde, faz já algum tempo, recebi uma ligação estranha. Uma voz de mulher identificando-se como enfermeira. Dizia ter livros para me dar, muitos livros. Livros para me dar! Gosto disso.

A mulher contou que cuidava de uma paciente com 99 anos de idade,uma senhora que vivia sozinha em sua casa próximo ao centro da cidade. Durante todas aquelas décadas, a senhora acumulara livros à mancheia. Agora, no fim da sua jornada nesse Vale de Lágrimas, enfraquecida por doenças, acamada, os livros não lhe serviam mais e, como em geral acontece, a família não sabia o que fazer com eles. Donde, a ligação. Eu queria os livros? Uau! Claro que queria!

Combinei de buscá-los num sábado pela manhã. Passei dias imaginando a biblioteca que transferiria para minha casa. O porta-malas do meu carro seria suficiente para carregá-los? Teria de buscar caixas no supermercado? Que autores me esperavam?

Na data aprazada, cheguei ao endereço que a enfermeira havia me dado, uma casa antiga, preservando a arquitetura original da metade do século passado, próximo ao centro da cidade. Quem abriu a porta foi uma jovem: a enfermeira. Uma dia antes, a velhinha se mudara para o hospital.

A moça me conduziu até algumas pilhas de volumes atirados no parquê da sala. Dezenas de livros. Centenas, talvez. Agachei-me para examiná-los. Mal conservados, empoeirados, alguns já sem a capa. Muitos escritos em francês, outros tantos em espanhol, a maioria “romances de moças” do meio do século passado. Os títulos se assemelhavam: o marido ideal, a noiva feliz, a paixão realizada, o homem da minha vida, amores, amores, amores sem fim. De todos aqueles livros, só um me interessou. Um único.

Suspirei. Ergui-me. O estilo dos livros despertou-me uma suspeita. Perguntei à enfermeira se podia ver mais da casa. Ela concordou. Guiou-me pelas peças amplas, atulhadas de mobiliário. O lugar parecia ter sido congelado nos anos 50. Como essas residências de casais que têm filhos já adultos, filhos que já se emanciparam e foram embora, viver suas próprias vidas em seus próprios apartamentos. A casa dos pais fica cristalizada no passado, no tempo em que as crianças davam-lhe alma. Assim era a casa da velhinha, com seus porta-retratos, seus abajures, suas cristaleiras.

Voltei para as pilhas de livros. Peguei o único que havia considerado aproveitável. Virei-me para a enfermeira:

– Desculpe perguntar, mas essa senhora… ela é solteira?

– É – confirmou.– Noventa e nove anos e nunca se casou, apesar de ter sido bem bonita quando jovem. Nunca teve um homem, um namorado, nada. Sabe…– a enfermeira vacilou – ela era virgem… Mas, esses dias, enquanto cuidava dela, ela se ergueu na cama e perguntou se eu era sua filha…

Olhando para o livro que tinha nas mãos, mal acreditei em toda aquela história. Era redonda demais. Era como se fosse um filme. Como uma das histórias romanescas que embalaram a imaginação da dona do apartamento em sua juventude. Porque o livro,o único livro interessante dentre tantos que ela havia guardado em sua longa vida, era um clássico de Gabriel García Márquez:

“Cem Anos de Solidão”.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Os crimes de abril de 1964

O primeiro assassinato aconteceu às 3h45 da manhã do dia 2 de abril quando o presidente da Câmara de Deputados, Ranieri Mazzilli, foi empossado na presidência da República com João Goulart ainda em território brasileiro. Assassinato da Constituição. Depois disso, todos os crimes foram cometidos. O jornalista Eurilo Duarte, no livro “Os idos de março e a queda em abril”, organizado e publicado, ainda em 1964, pelo golpista Alberto Dines, então diretor do Jornal do Brasil, não teve como negar: “Dia 3 de abril: calcula-se em 10 mil o número de prisões pela polícia e pelo exército. Entre os presos, o físico Mário Schemberg, professor de Física Nuclear da Universidade de São Paulo”. Mais: “A caravana policial leva tudo, e investigadores são vistos carregando máquinas de escrever, somar, enciclopédias”.

Até Alberto Dines teve de reconhecer: “A primeira lista de prisões foi atroz. As arbitrariedades iniciais, sufocantes. Os mandatos cassados e os expurgos dos dias seguintes foram um choque. A única saída era desprezar Jango, porque fora a sua leviandade, fora a ambição primária dos que o rodeavam as causadoras do expurgo”. Como eram antas os jornalistas conservadores de 1964! Apoiaram a implantação de uma ditadura achando que era a democracia. Carregaram nos braços, no combate à corrupção de esquerda, o rei dos corruptos de direita, o governador de São Paulo Adhemar de Barros, que, dado o golpe, passou a exigir cassações para que a “revolução” pudesse “cumprir o seu objetivo”. Os taipas brincaram com fogo.

Alguns, como Antonio Callado, que se tornaria escritor bajulado, lambuzou-se na lama das suas imagens grotescas: “Jango puxou vários gatilhos. Ao que se sabe, muitos cirurgiões lhe garantiram, através dos anos, que poderia corrigir o defeito que tem na perna esquerda. Mas o horror à ideia de dor física fez com que Jango jamais considerasse a sério o conselho. Talvez por isso tenha cometido seu suicídio indolor na Páscoa”. Um cara que escreve isso é um pulha.

Um medíocre. Era, como hoje, ser moderninho.

Callado, com essa verve, seria, se vivo fosse, colunista da Veja e parceiro dos lacerdinhas.

Ele era capaz de muito pior. Sobre o exílio de Jango no Uruguai: “No mais, o tédio de Dona Maria Teresa, a procurar casa, a levar as crianças à praia, com saudades do Brasil e do carro novo em folha, uma Mercedes verde, tipo esporte, que Jango não tinha querido que ela estreasse, para evitar ostentação. Agora, Dona Maria Teresa, não tem mais o marido Presidente e nem tem o carro (…) Haverá ainda algum futuro político para esse líder de apenas 40 anos? Parece pouco provável (…) E quando, eventualmente, chegar à Presidência da República um homem de esquerda, Jango talvez reapareça como vice”.

A isso se chamava de jornalismo. Alguns sentem saudades desses tempos de suposta profundidade e alta qualidade. O jornalismo brasileiro dos anos 1950 e 1960 era pura ideologia. Não mudou.

Na época, caluniar quase não dava processo. O único jeito de resolver era à bala.

A luta armada no Brasil, resistência das esquerdas à ditadura, começou depois do golpe.

A imprensa, apoiando os defensores do golpe, tenta alterar essas datas.


Só para constar relutei muito antes de postar um texto sobre esse golpe civil-militar mas por ter escutado tantas asneiras sobre pessoas defendendo essa mancha escura em nossa história resolvi me manisfestar.

sábado, 15 de março de 2014

Beija Eu

Nos flashes coloridos, ela se movia tenaz. Seu quadril, feito uma batedeira orbital, visitava as imediações de seu corpo perfeito com a velocidade de um daqueles bonequinhos de corda. O lábio inferior mordido sem esforço, sem tipo, só desejo. O cabelo lhe caía ao rosto como uma cortina de seda, revelando e escondendo as janelas de sua alma.

Ele, atordoado, segurava o copo de vodka a meia altura, molhando os pés de quem esbarrava. Tolos, não haviam notado a mulher mais espetacular do planeta, bem ali, ao lado de um senhor de meia idade girando as mãos como girava-se na idade média.

Dessa vez não poderia culpar o álcool que roubava o espaço do sangue em suas veias, muito menos os sete meses e meio que estava sem fazer sexo. Nem com ele mesmo. Era um chamado, como as sereias atraíam os velhos lobos do mar. Era magnetismo que o fazia atravessar a pista de dança para conhecer aquele espetáculo. Aquela batedeira orbital.

Como numa equação perfeita eles se entreolharam, sem escolha, sem apresentação, se outros casais diziam ter química, estes não. Tinham física, circundavam o mesmo ponto como fossem elétron e próton, agitados para se fundirem no mesmo núcleo.

Pernas enroscadas, ele a envolvia com um dos braços enquanto o outro segurava o copo de vodka, perigosamente próximo as mãos giratórias do senhor de meia idade. Ela apoiava os pulsos em seus ombros, as mãos ficavam penduradas de maneira relaxada, tocando com as pontas dos dedos seu trapézio.

A temperatura subiu, e com ela foi o copo de vodka, arremessado com um golpe certeiro do senhor de meia idade em direção ao globo de espelhos. As respirações ofegantes, sincronizadas é claro, eram divididas ao pé do ouvido, como quem quer mostrar o quanto está fora de si. Livre da vodka ele a laçou com o braço direito pela cintura, o movimento lançou seus cabelos dourados para trás revelando seu rosto assustado e excitado. Sem fechar os olhos, lentamente se aproximaram, o olhar dele era clássico, depois de seis doses de vodka, entreaberto, o dela estranhamente apreensivo, como se encarasse um desafio.

Ele finalmente a beijou, e o mundo parecia estar em câmera lenta. Para ele, desde que encostou seus lábios aos dela, tudo parecia moroso como uma canção de João Gilberto, o tempo realmente não passava, seu gosto, os movimentos de sua língua, as escapadas que deixavam suas bochechas e queixo úmidos, aquele beijo parecia que nunca acabaria. Mas acabou. E depois de toda aquela tensão. ele finalmente a olhou nos olhos e disse:

- Sabe, eu tenho uma teoria. Não acredito que beijos sejam bons ou ruins. Eles simplesmente se encaixam ou não. Mas hoje eu percebi que estou errado. Seu beijo é como tentar alcançar um pudim de jiló no fundo de um copo longo e isso não deve agradar nem um Chow Chow no Cio.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Pobre Brasil

Quando o Brasil era comandado pela direita, o governo era corrupto, truculento e conservador. Agora, que é comandado pela esquerda, o governo é igualmente corrupto, leniente com a violência e permissivo. Nos anos 60 e 70, o CCC, Comando de Caça aos Comunistas, empastelava jornais e espancava jornalistas. Nos anos 20 do século 21, os Black Blocks apedrejam jornais e assassinam jornalistas com bombas.
Que diferença faz para quem tem seu patrimônio destruído ou é agredido? Que diferença faz para os quatro filhos do cinegrafista que morreu nesta segunda-feira se seus assassinos são jovens universitários de esquerda ou playboys da direita? Será que os jovens que agridem gente para que a passagem de ônibus seja mais barata vão até a casa em que morava o cinegrafista dizer a seus filhos que eles nunca mais verão o pai?
A sociedade brasileira tem a consciência pesada por causa da ditadura, o que não é um sentimento ruim. Só quem tem algum caráter é torturado pelo remorso. Mas, no caso brasileiro, tenho dúvidas se é remorso de fato. Tenho mais a impressão de que é medo de provocar a ira de quem manda, protesta e acusa.
É por isso que o Brasil talvez seja o único país do planeta que não tem nenhum político que assuma ser de direita, salvo figuras folclóricas como Bolsonaro e Feliciano. Não, não, no Brasil todos são do centro para a esquerda. É um país inteiro torto para um lado. Por que não pode, no Brasil, o político ser de direita e decente, respeitado por suas opiniões mesmo por quem não concorde com elas? Por que todo político de direita tem de ser conservador e reacionário?
E por que todo político de esquerda tem de ser irresponsável? Por que todo político de esquerda tem sempre de trabalhar pela desestabilização? Não pode alguém ser de esquerda e ser consciente e equânime, mesmo quando a razão está do outro lado?
A direita enriqueceu seus apaniguados com a corrupção. Empresários lucraram selvagemente, embora ditadores como Geisel, Médici e Figueiredo jamais tenham colocado um centavo ilícito no bolso. A esquerda desvia dinheiro da corrupção para puxadinhos do Estado, ONGs escusas, organizações que sonham com o terrorismo, mas que não tem cacife suficiente para ser.
Qual é o melhor roubo? Nós temos que escolher entre um e outro? Só existem Malufs e Pizzolatos no Brasil?
O Brasil melhorou economicamente, da redemocratização para cá. Moralmente, está a um passo da falência. Tudo pode no Brasil, desde acorrentar um menino negro num poste do Rio, como se fosse um pelourinho, até disparar um morteiro na orelha de um repórter. Tudo pode. Basta você alegar que é de esquerda. Ou ser de direita e apoiar o governo da esquerda. Ou não ser porcaria nenhuma, mas estar do lado vencedor, na hora da vitória. Tudo pode.
Pobre Brasil.
Pobres filhos do Brasil.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O Vestidinho

Ela era uma dessas mulheres cheias de opinião. Uma mulher inteligente. Até meio feminista. Estávamos juntos já há algum tempo. Ela trabalhava logo cedo, aí pelas nove horas. Eu, só à tarde.

Numa dessas manhãs, estava na cama, deitadão, enquanto ela se vestia. Fiquei observando. Gosto de observar as mulheres quando elas se vestem de manhã. Afofei o travesseiro, juntei as mãos atrás da nuca e pus-me em feliz contemplação.

Ela assestou a calcinha e mirou-se no espelho para conferir o resultado. Pareceu aprovar o que viu. Eu também. Depois, calçou os sapatos, uma sandália de tiras. Exatamente assim, em cima das sandálias e dentro da calcinha mínima, ela foi até o armário e escolheu um vestido. E botou aquele vestido.

Um vestido pequeninho. Mas miúdo, miudinho! Só para ter idéia: as rendas da calcinha ficavam de fora. Dei um pulo na cama. Falei sem pensar, num impulso, eu que nem sou de falar essas coisas para uma mulher. Mas falei. Falei mesmo. O seguinte:
— Tu não vais sair assim!

Ela parou. Me olhou:
— Como é que é?

Não recuei. Tinha ido longe demais. Não ia voltar atrás. Confirmei:
— Tu não vais sair assim!

Ela sorriu:
— Por que não?

E eu:
— Porque eu não quero! Imagina: as tuas calcinhas estão aparecendo! Todo mundo vai ver as rendas da tua calcinha! Não vai!
— Não vou por que tu não quer, é isso?

Não podia mais voltar daquele ponto. Confirmei:
— Exatamente! Não vai porque eu não quero!

Naquele momento, pensei: ela é uma mulher inteligente, cheia de opinião, não vai admitir meu veto. Vamos ter sérios problemas, agora. Vamos discutir, vamos brigar, vai ser medonho.

Mas não. Ela abriu um sorriso cheio de dentes, uns 80 dentes, sentou-se na beira da cama, pegou minha mão e a pôs entre as mãozinhas macias de creme Nívea. E miou:
— Foi a coisa mais linda que tu já me disseste…

Depois, trocou de roupa toda faceira e se foi sorrindo. Fiquei lá, deitado na cama, perplexo, mas compreendi: com as mulheres, realmente, a gente precisa saber o que quer.