Há
muita confusão acerca do atentado terrorista em Paris, matando vários
cartunistas. Quase só se ouve um lado e não se buscam as raízes mais
profundas deste fato condenável mas que exige uma interpretação que
englobe seus vários aspectos ocultados pela midia internacional e pela
comoção legítima face a um ato criminoso. Mas ele é uma resposta a algo
que ofendia milhares de fiéis muçulmanos. Evidentemente não se responde
com o assassinato.
Mas também não se devem criar as condições psicológicas e políticas que
levem a alguns radicais a lançarem mão de meios reprováveis sobre todos
os aspectos. Publico aqui um texto do padre Antonio Piber,
que é teólogo e historiador e conhece bem a situação da França atual.
Ele nos fornece dados que muitos talvez não os conheçam. Suas reflexões
nos ajudam a ver a complexidade deste anti-fenômeno com suas aplicações
também à situação no Brasil:
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Eu
condeno os atentados em Paris, condeno todos os atentados e toda a
violência, apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de
discussões, sou da paz e me esforço para ter auto controle sobre minhas
emoções…
Lembro
da frase de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, pois faço
parte da humanidade; eis porque nunca me pergunto por quem dobram os
sinos: é por mim”. Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar
um tiro, ninguém o merece, acredito na mudança, na evolução, na
conversão. Em momento nenhum, eu quis que os cartunistas da Charlie
Hebdo morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem, que mudassem… Ainda
estou constrangido pelos atentados à verdade, à boa imprensa, à
honestidade, que a revista Veja, a Globo e outros veículos da imprensa
brasileira promoveram nesta última eleição.
A
Charlie Hebdo é uma revista importante na França, fundada em 1970, é
mais ou menos o que foi o Pasquim. Isso lá na França. 90% do mundo (eu
inclusive) só foi conhecer a Charlie Hebdo em 2006, e já de uma forma
bastante negativa: a revista republicou as charges do jornal dinamarquês
Jyllands-Posten (identificado como “Liberal-Conservador”, ou seja, a
direita europeia). E porque fez isso? Oficialmente, em nome da
“Liberdade de Expressão”, mas tem mais…
O
editor da revista na época era Philippe Val. O mesmo que escreveu um
texto em 2000 chamando os palestinos (sim! O povo todo) de
“não-civilizados” (o que gerou críticas da colega de revista Mona
Chollet (críticas que foram resolvidas com a demissão sumaria dela). Ele
ficou no comando até 2009, quando foi substituído por Stéphane
Charbonnier, conhecido só como Charb. Foi sob o comando dele que a
revista intensificou suas charges relacionadas ao Islã, ainda mais após o
atentado que a revista sofreu em 2011…
A
França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na maioria, imigrantes das
ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não estão inseridos igualmente
na sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à condição de
“cidadão de segunda classe”, vítimas de preconceitos e exclusões. Após
os atentados do World Trade Center, a situação piorou.
Alguns
chamam os cartunistas mortos de “heróis” ou de os “gigantes do humor
politicamente incorreto”, outros muitos os chamam de “mártires da
liberdade de expressão”. Vou colocar na conta do momento, da emoção. As
charges polêmicas do Charlie Hebdo, como os comentários políticos de
colunistas da Veja, são de péssimo gosto, mas isso não está em questão. O
fato é que elas são perigosas, criminosas até, por dois motivos.
O
primeiro é a intolerância. Na religião muçulmana, há um princípio que
diz que o Profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. Esse é
um preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita
todos os muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico
chutasse a imagem de Nossa Senhora para atacar os católicos…
Qual
é o objetivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja
tão banalizado quanto o catolicismo”. “É preciso” porque? Para que?
Note
que ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns
pontos específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O
alvo é o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas já falavam da
tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura
alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras
publicações, diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e
decidiram processar a revista. Os tribunais franceses, famosos há mais
de um século pela xenofobia e intolerância (ver Caso Dreyfus), como o
STF no Brasil, que foi parcial nas decisões nas últimas eleições e no
julgar com dois pessoas e duas medidas caos de corrupção de políticos do
PSDB ou do PT, deram ganho de causa para a revista.
Foi
como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e
intensificou as charges e textos contra o Islã e contra o cristianismo,
se tem dúvidas, procure no Google e veja as publicações que eles fazem,
não tenho coragem de publicá-las aqui…
Mas
existe outro problema, ainda mais grave. A maneira como o jornal
retratava os muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islã sempre
estavam caracterizados por suas roupas típicas, e sempre portando armas
ou fazendo alusões à violência, com trocadilhos infames com “matar” e
“explodir”…). Alguns argumentam que o alvo era somente “os indivíduos
radicais”, mas a partir do momento que somente esses indivíduos são
mostrados, cria-se uma generalização. Nem sempre existe um signo claro
que indique que aquele muçulmano é um desviante, já que na maioria dos
casos é só o desviante que aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma
charge de um negro assaltante e disséssemos que ela não
critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros que assaltam…
E
aí colocamos esse tipo de mensagem na sociedade francesa, com seus 10%
de muçulmanos já marginalizados. O poeta satírico francês Jean de
Santeul cunhou a frase: “Castigat ridendo mores” (costumes são
corrigidos rindo-se deles). A piada tem esse poder. Mas piada são sempre
preconceituosas, ela transmite e alimenta o preconceito. Se ela sempre
retrata o árabe como terrorista, as pessoas começam a acreditar que todo
árabe é terrorista. Se esse árabe terrorista dos quadrinhos se veste
exatamente da mesma forma que seu vizinho muçulmano, a relação de
identificação-projeção é criada mesmo que inconscientemente. Os
quadrinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a Islamofobia.
Como toda população marginalizada, os muçulmanos franceses são alvo de
ataques de grupos de extrema-direita. Esses ataques matam pessoas. Falar
que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como disse Charb, é
hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas…
Uma das defesas comuns ao estilo do Charlie Hebdo é dizer que eles também criticavam católicos e judeus…
Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.
“Mas
isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em
sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que
há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o
atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça tivesse punido a
Charlie Hebdo no primeiro excesso, assim como deveria/deve punir a Veja
por suas mentiras. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não
devem passar”.
“Mas
isso é censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura. Um dos
significados da palavra “Censura” é repreender. A censura já existe.
Quando se decide que você não pode sair simplesmente inventando
histórias caluniosas sobre outra pessoa, isso é censura. Quando se diz
que determinados discursos fomentam o ódio e por isso devem ser
evitados, como o racismo ou a homofobia, isso é censura. Ou mesmo
situações mais banais: quando dizem que você não pode usar determinado
personagem porque ele é propriedade de outra pessoa, isso também é
censura. Nem toda censura é ruim…
Deixo
claro que não estou defendendo a censura prévia, sempre burra. Não
estou dizendo que deveria ter uma lista de palavras/situações que
deveriam ser banidas do humor. Estou dizendo que cada caso deveria ser
julgado. Excessos devem ser punidos. Não é “Não fale”. É “Fale, mas
aguente as consequências”. E é melhor que as consequências venham na
forma de processos judiciais do que de balas de fuzis ou bombas.
Voltando
à França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns urubus são mais
espertos do que outros, e já começamos a ver no que o atentado vai dar.
Em discurso, Marine Le Pen declarou: “a nação foi atacada, a nossa
cultura, o nosso modo de vida. Foi a eles que a guerra foi declarada”.
Essa fala mostra exatamente as raízes da islamofobia. Para os setores
nacionalistas franceses (de direita, centro ou esquerda), é inadmissível
que 10% da população do país não tenha interesse em seguir “o modo de
vida francês”. Essa colônia, que não se mistura, que não abandona sua
identidade, é extremamente incômoda. Contra isso, todo tipo de medida é
tomada. Desde leis que proíbem imigrantes de expressar sua religião até…
charges ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos! Muitos
chargistas do mundo todo desenharam armas feitas com canetas para
homenagear as vítimas. De longe, a homenagem parece válida. Quando
chegam as notícias de que locais de culto islâmico na França foram
atacados, um deles com granadas!, nessa madrugada, a coisa perde um
pouco a beleza. É a resposta ao discurso de Le Pen, que pedia para a
França declarar “guerra ao fundamentalismo” (mas que nos ouvidos dos
xenófobos ecoa como “guerra aos muçulmanos”, e ela sabe disso).
Por isso tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro do atentado, eu não sou Charlie. Je ne suis pas Charlie.