Digamos que você seja poderoso e invencível. Ninguém pode reprimi-lo,
ninguém pode batê-lo. O que o impedirá de pegar o que quiser, quando
quiser? O outro tem uma mulher que você deseja? Você a toma. Aquela casa
é melhor do que a sua? Você expulsa quem nela mora e lá se instala.
Você não gosta de um vizinho? Resolve o incômodo metendo-lhe uma bala na
têmpora.
O que lhe impediria de fazer isso, se você fosse poderoso, se estivesse fora do alcance do braço da lei?
Talvez apenas a percepção de que essas ações são erradas. De que são… pecados. Eis aí uma noção importante na formação do espírito civilizado do ser humano: a noção do pecado.
Os hebreus inventaram o pecado, mais especificamente os profetas
hebreus, por volta do oitavo século antes de Cristo. Até então, as
religiões não tinham sentido moral. Mesmo o judaísmo pioneiro não tinha
sentido moral. Os homens tentavam agradar a seus deuses com sacrifícios e
com adoração a fim de obter benesses ou evitar infortúnios, mas não
precisavam ter bom comportamento ou respeitar o próximo.
É verdade que Moisés fez uma tentativa de estabelecimento de padrões
éticos antes do ano 1.000 a.C, com os 10 Mandamentos, mas logo os
hebreus voltaram aos velhos hábitos. Foram os profetas, sobretudo os
três Isaías, que reenquadraram o judaísmo e fundaram a ética ocidental.
Foram eles, inclusive, que estabeleceram o domínio masculino no mundo.
Todas as religiões tinham poderosas deusas-mães, e o judaísmo também:
Aserá era a deusa consorte de Javé, chamada de “a rainha dos céus”. O
culto a Aserá foi sufocado para que os homens sufocassem as mulheres,
mas isso é assunto para outra crônica. Quero voltar aos três profetas
Isaías. O Primeiro Isaías era um Lênin de sandálias. Ele pregava:
“Lavem-se! Limpem-se! Removam suas más obras para longe das minhas
vistas! Parem de fazer o mal! Aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça!
Acabem com a opressão! Lutem pelos direitos do órfão! Defendam a causa
da viúva! Que pretendeis ao oprimir o meu povo e esmagar o rosto dos
pobres? Ai dos que acumulam casa sobre casa e ajuntam terras e mais
terras! Ai dos que promulgam decretos injustos para negar justiça aos
necessitados, defraudam o direito dos pobres para explorar as viúvas e
roubar os órfãos!”
Pela primeira vez na História, os pobres, os oprimidos, os órfãos e
as viúvas tinham voz. Pela primeira vez, alguém criticava os excessos de
acumulação de propriedade. Isaías antecipou-se a Thomas Piketty em 28
séculos!
A partir dos profetas hebreus, as religiões tornaram-se morais. O
homem não cometia más ações para não desagradar a Deus. Foi uma
extraordinária evolução na História da Humanidade.
As religiões não são um mal, apesar de os homens muitas e muitas
vezes a utilizarem para o mal. Os terroristas que atacaram a Charlie
Hebdo, em Paris, o fizeram em nome da sua crença, mas eles são uma
degeneração, como o foram os cruzados cristãos, mil anos atrás.
A Charlie Hebdo é uma revista que critica religiões, todas as
religiões, e para isso não se vale da racionalidade ou da ponderação. Ao
contrário: as charges da Charlie Hebdo são agressivas, ofensivas e,
talvez o pior, sem graça. Há muito a se criticar nos padrões morais que
começaram a ser construídos pelos profetas hebreus há 2.800 anos. A
dominação masculina, iniciada com o banimento de Aserá, por exemplo,
oprime mulheres, mutila-as e as mata historicamente. Ou seja: faz o Mal.
Mas até nisso o caráter moral da religião pode ser um aliado. A
Charlie Hebdo erra no seu ataque desrespeitoso às religiões. Os
fanáticos religiosos erraram muitíssimo mais no ataque à Charlie Hebdo.
Podemos fazer esse julgamento porque tentamos, todos os dias, refletir
sobre o que é certo ou errado. Porque aprendemos isso há mais de dois
mil e quinhentos anos atrás, com os profetas andrajosos do Oriente
Médio.
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