sábado, 17 de janeiro de 2015

O bem e o mal. O certo e o errado

Digamos que você seja poderoso e invencível. Ninguém pode reprimi-lo, ninguém pode batê-lo. O que o impedirá de pegar o que quiser, quando quiser? O outro tem uma mulher que você deseja? Você a toma. Aquela casa é melhor do que a sua? Você expulsa quem nela mora e lá se instala. Você não gosta de um vizinho? Resolve o incômodo metendo-lhe uma bala na têmpora.

O que lhe impediria de fazer isso, se você fosse poderoso, se estivesse fora do alcance do braço da lei?

Talvez apenas a percepção de que essas ações são erradas. De que são… pecados. Eis aí uma noção importante na formação do espírito civilizado do ser humano: a noção do pecado.

Os hebreus inventaram o pecado, mais especificamente os profetas hebreus, por volta do oitavo século antes de Cristo. Até então, as religiões não tinham sentido moral. Mesmo o judaísmo pioneiro não tinha sentido moral. Os homens tentavam agradar a seus deuses com sacrifícios e com adoração a fim de obter benesses ou evitar infortúnios, mas não precisavam ter bom comportamento ou respeitar o próximo.

É verdade que Moisés fez uma tentativa de estabelecimento de padrões éticos antes do ano 1.000 a.C, com os 10 Mandamentos, mas logo os hebreus voltaram aos velhos hábitos. Foram os profetas, sobretudo os três Isaías, que reenquadraram o judaísmo e fundaram a ética ocidental. Foram eles, inclusive, que estabeleceram o domínio masculino no mundo. Todas as religiões tinham poderosas deusas-mães, e o judaísmo também: Aserá era a deusa consorte de Javé, chamada de “a rainha dos céus”. O culto a Aserá foi sufocado para que os homens sufocassem as mulheres, mas isso é assunto para outra crônica. Quero voltar aos três profetas Isaías. O Primeiro Isaías era um Lênin de sandálias. Ele pregava:

“Lavem-se! Limpem-se! Removam suas más obras para longe das minhas vistas! Parem de fazer o mal! Aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça! Acabem com a opressão! Lutem pelos direitos do órfão! Defendam a causa da viúva! Que pretendeis ao oprimir o meu povo e esmagar o rosto dos pobres? Ai dos que acumulam casa sobre casa e ajuntam terras e mais terras! Ai dos que promulgam decretos injustos para negar justiça aos necessitados, defraudam o direito dos pobres para explorar as viúvas e roubar os órfãos!”

Pela primeira vez na História, os pobres, os oprimidos, os órfãos e as viúvas tinham voz. Pela primeira vez, alguém criticava os excessos de acumulação de propriedade. Isaías antecipou-se a Thomas Piketty em 28 séculos!

A partir dos profetas hebreus, as religiões tornaram-se morais. O homem não cometia más ações para não desagradar a Deus. Foi uma extraordinária evolução na História da Humanidade.

As religiões não são um mal, apesar de os homens muitas e muitas vezes a utilizarem para o mal. Os terroristas que atacaram a Charlie Hebdo, em Paris, o fizeram em nome da sua crença, mas eles são uma degeneração, como o foram os cruzados cristãos, mil anos atrás.

A Charlie Hebdo é uma revista que critica religiões, todas as religiões, e para isso não se vale da racionalidade ou da ponderação. Ao contrário: as charges da Charlie Hebdo são agressivas, ofensivas e, talvez o pior, sem graça. Há muito a se criticar nos padrões morais que começaram a ser construídos pelos profetas hebreus há 2.800 anos. A dominação masculina, iniciada com o banimento de Aserá, por exemplo, oprime mulheres, mutila-as e as mata historicamente. Ou seja: faz o Mal.

Mas até nisso o caráter moral da religião pode ser um aliado. A Charlie Hebdo erra no seu ataque desrespeitoso às religiões. Os fanáticos religiosos erraram muitíssimo mais no ataque à Charlie Hebdo. Podemos fazer esse julgamento porque tentamos, todos os dias, refletir sobre o que é certo ou errado. Porque aprendemos isso há mais de dois mil e quinhentos anos atrás, com os profetas andrajosos do Oriente Médio.​

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Je ne suis pas Charlie!!!

Há muita confusão acerca do atentado terrorista em Paris, matando vários cartunistas. Quase só se ouve um lado e não se buscam as raízes mais profundas deste fato condenável mas que exige uma interpretação que englobe seus vários aspectos ocultados pela midia internacional e pela comoção legítima face a um ato criminoso. Mas ele é uma resposta a algo que ofendia milhares de fiéis muçulmanos. Evidentemente não se responde com o assassinato. Mas também não se devem criar as condições psicológicas e políticas que levem a alguns radicais a lançarem mão de meios reprováveis sobre todos os aspectos. Publico aqui um texto do padre Antonio Piber, que é teólogo e historiador e conhece bem a situação da França atual. Ele nos fornece dados que muitos talvez não os conheçam. Suas reflexões nos ajudam a ver a complexidade deste anti-fenômeno com suas aplicações também à situação no Brasil:

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Eu condeno os atentados em Paris, condeno todos os atentados e toda a violência, apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de discussões, sou da paz e me esforço para ter auto controle sobre minhas emoções…
Lembro da frase de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, pois faço parte da humanidade; eis porque nunca me pergunto por quem dobram os sinos: é por mim”. Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar um tiro, ninguém o merece, acredito na mudança, na evolução, na conversão. Em momento nenhum, eu quis que os cartunistas da Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem, que mudassem… Ainda estou constrangido pelos atentados à verdade, à boa imprensa, à honestidade, que a revista Veja, a Globo e outros veículos da imprensa brasileira promoveram nesta última eleição.

A Charlie Hebdo é uma revista importante na França, fundada em 1970, é mais ou menos o que foi o Pasquim. Isso lá na França. 90% do mundo (eu inclusive) só foi conhecer a Charlie Hebdo em 2006, e já de uma forma bastante negativa: a revista republicou as charges do jornal dinamarquês Jyllands-Posten (identificado como “Liberal-Conservador”, ou seja, a direita europeia). E porque fez isso? Oficialmente, em nome da “Liberdade de Expressão”, mas tem mais…

O editor da revista na época era Philippe Val. O mesmo que escreveu um texto em 2000 chamando os palestinos (sim! O povo todo) de “não-civilizados” (o que gerou críticas da colega de revista Mona Chollet (críticas que foram resolvidas com a demissão sumaria dela). Ele ficou no comando até 2009, quando foi substituído por Stéphane Charbonnier, conhecido só como Charb. Foi sob o comando dele que a revista intensificou suas charges relacionadas ao Islã, ainda mais após o atentado que a revista sofreu em 2011…

A França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na maioria, imigrantes das ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não estão inseridos igualmente na sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à condição de “cidadão de segunda classe”, vítimas de preconceitos e exclusões. Após os atentados do World Trade Center, a situação piorou.

Alguns chamam os cartunistas mortos de “heróis” ou de os “gigantes do humor politicamente incorreto”, outros muitos os chamam de “mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar na conta do momento, da emoção. As charges polêmicas do Charlie Hebdo, como os comentários políticos de colunistas da Veja, são de péssimo gosto, mas isso não está em questão. O fato é que elas são perigosas, criminosas até, por dois motivos.

O primeiro é a intolerância. Na religião muçulmana, há um princípio que diz que o Profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. Esse é um preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita todos os muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a imagem de Nossa Senhora para atacar os católicos…

Qual é o objetivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. “É preciso” porque? Para que?

Note que ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns pontos específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas já falavam da tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras publicações, diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar a revista. Os tribunais franceses, famosos há mais de um século pela xenofobia e intolerância (ver Caso Dreyfus), como o STF no Brasil, que foi parcial nas decisões nas últimas eleições e no julgar com dois pessoas e duas medidas caos de corrupção de políticos do PSDB ou do PT, deram ganho de causa para a revista.

Foi como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e intensificou as charges e textos contra o Islã e contra o cristianismo, se tem dúvidas, procure no Google e veja as publicações que eles fazem, não tenho coragem de publicá-las aqui…

Mas existe outro problema, ainda mais grave. A maneira como o jornal retratava os muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islã sempre estavam caracterizados por suas roupas típicas, e sempre portando armas ou fazendo alusões à violência, com trocadilhos infames com “matar” e “explodir”…). Alguns argumentam que o alvo era somente “os indivíduos radicais”, mas a partir do momento que somente esses indivíduos são mostrados, cria-se uma generalização. Nem sempre existe um signo claro que indique que aquele muçulmano é um desviante, já que na maioria dos casos é só o desviante que aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e disséssemos que ela não critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros que assaltam…

E aí colocamos esse tipo de mensagem na sociedade francesa, com seus 10% de muçulmanos já marginalizados. O poeta satírico francês Jean de Santeul cunhou a frase: “Castigat ridendo mores” (costumes são corrigidos rindo-se deles). A piada tem esse poder. Mas piada são sempre preconceituosas, ela transmite e alimenta o preconceito. Se ela sempre retrata o árabe como terrorista, as pessoas começam a acreditar que todo árabe é terrorista. Se esse árabe terrorista dos quadrinhos se veste exatamente da mesma forma que seu vizinho muçulmano, a relação de identificação-projeção é criada mesmo que inconscientemente. Os quadrinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a Islamofobia. Como toda população marginalizada, os muçulmanos franceses são alvo de ataques de grupos de extrema-direita. Esses ataques matam pessoas. Falar que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como disse Charb, é hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas…

Uma das defesas comuns ao estilo do Charlie Hebdo é dizer que eles também criticavam católicos e judeus…
Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.
“Mas isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso, assim como deveria/deve punir a Veja por suas mentiras. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.

“Mas isso é censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura. Um dos significados da palavra “Censura” é repreender. A censura já existe. Quando se decide que você não pode sair simplesmente inventando histórias caluniosas sobre outra pessoa, isso é censura. Quando se diz que determinados discursos fomentam o ódio e por isso devem ser evitados, como o racismo ou a homofobia, isso é censura. Ou mesmo situações mais banais: quando dizem que você não pode usar determinado personagem porque ele é propriedade de outra pessoa, isso também é censura. Nem toda censura é ruim…

Deixo claro que não estou defendendo a censura prévia, sempre burra. Não estou dizendo que deveria ter uma lista de palavras/situações que deveriam ser banidas do humor. Estou dizendo que cada caso deveria ser julgado. Excessos devem ser punidos. Não é “Não fale”. É “Fale, mas aguente as consequências”. E é melhor que as consequências venham na forma de processos judiciais do que de balas de fuzis ou bombas.

Voltando à França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns urubus são mais espertos do que outros, e já começamos a ver no que o atentado vai dar. Em discurso, Marine Le Pen declarou: “a nação foi atacada, a nossa cultura, o nosso modo de vida. Foi a eles que a guerra foi declarada”. Essa fala mostra exatamente as raízes da islamofobia. Para os setores nacionalistas franceses (de direita, centro ou esquerda), é inadmissível que 10% da população do país não tenha interesse em seguir “o modo de vida francês”. Essa colônia, que não se mistura, que não abandona sua identidade, é extremamente incômoda. Contra isso, todo tipo de medida é tomada. Desde leis que proíbem imigrantes de expressar sua religião até… charges ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos! Muitos chargistas do mundo todo desenharam armas feitas com canetas para homenagear as vítimas. De longe, a homenagem parece válida. Quando chegam as notícias de que locais de culto islâmico na França foram atacados, um deles com granadas!, nessa madrugada, a coisa perde um pouco a beleza. É a resposta ao discurso de Le Pen, que pedia para a França declarar “guerra ao fundamentalismo” (mas que nos ouvidos dos xenófobos ecoa como “guerra aos muçulmanos”, e ela sabe disso).

Por isso tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro do atentado, eu não sou Charlie. Je ne suis pas Charlie.