sábado, 17 de maio de 2014

Um livro, uma história...

Uma tarde, faz já algum tempo, recebi uma ligação estranha. Uma voz de mulher identificando-se como enfermeira. Dizia ter livros para me dar, muitos livros. Livros para me dar! Gosto disso.

A mulher contou que cuidava de uma paciente com 99 anos de idade,uma senhora que vivia sozinha em sua casa próximo ao centro da cidade. Durante todas aquelas décadas, a senhora acumulara livros à mancheia. Agora, no fim da sua jornada nesse Vale de Lágrimas, enfraquecida por doenças, acamada, os livros não lhe serviam mais e, como em geral acontece, a família não sabia o que fazer com eles. Donde, a ligação. Eu queria os livros? Uau! Claro que queria!

Combinei de buscá-los num sábado pela manhã. Passei dias imaginando a biblioteca que transferiria para minha casa. O porta-malas do meu carro seria suficiente para carregá-los? Teria de buscar caixas no supermercado? Que autores me esperavam?

Na data aprazada, cheguei ao endereço que a enfermeira havia me dado, uma casa antiga, preservando a arquitetura original da metade do século passado, próximo ao centro da cidade. Quem abriu a porta foi uma jovem: a enfermeira. Uma dia antes, a velhinha se mudara para o hospital.

A moça me conduziu até algumas pilhas de volumes atirados no parquê da sala. Dezenas de livros. Centenas, talvez. Agachei-me para examiná-los. Mal conservados, empoeirados, alguns já sem a capa. Muitos escritos em francês, outros tantos em espanhol, a maioria “romances de moças” do meio do século passado. Os títulos se assemelhavam: o marido ideal, a noiva feliz, a paixão realizada, o homem da minha vida, amores, amores, amores sem fim. De todos aqueles livros, só um me interessou. Um único.

Suspirei. Ergui-me. O estilo dos livros despertou-me uma suspeita. Perguntei à enfermeira se podia ver mais da casa. Ela concordou. Guiou-me pelas peças amplas, atulhadas de mobiliário. O lugar parecia ter sido congelado nos anos 50. Como essas residências de casais que têm filhos já adultos, filhos que já se emanciparam e foram embora, viver suas próprias vidas em seus próprios apartamentos. A casa dos pais fica cristalizada no passado, no tempo em que as crianças davam-lhe alma. Assim era a casa da velhinha, com seus porta-retratos, seus abajures, suas cristaleiras.

Voltei para as pilhas de livros. Peguei o único que havia considerado aproveitável. Virei-me para a enfermeira:

– Desculpe perguntar, mas essa senhora… ela é solteira?

– É – confirmou.– Noventa e nove anos e nunca se casou, apesar de ter sido bem bonita quando jovem. Nunca teve um homem, um namorado, nada. Sabe…– a enfermeira vacilou – ela era virgem… Mas, esses dias, enquanto cuidava dela, ela se ergueu na cama e perguntou se eu era sua filha…

Olhando para o livro que tinha nas mãos, mal acreditei em toda aquela história. Era redonda demais. Era como se fosse um filme. Como uma das histórias romanescas que embalaram a imaginação da dona do apartamento em sua juventude. Porque o livro,o único livro interessante dentre tantos que ela havia guardado em sua longa vida, era um clássico de Gabriel García Márquez:

“Cem Anos de Solidão”.